terça-feira, 8 de novembro de 2011

COMO TRABALHAR COM O POVO?




COMO SE DÁ A RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA?
O encontro com Paulo Freire começou com uma discussão entre os participantes sobre a relação teoria-prática. Em seguida, o Paulo passou a comentar as idéias abordadas. Tentamos reproduzir as colocações dele no texto que segue abaixo:
"Em primeiro lugar, o moço ali tem razão, quando afirmou que não se pode ficar só na teoria. O que ensina a gente é fazer as coisas. É a prática da gente. É claro, não faz mal nenhum que se leia um livro ou outro. Há um livrinho aí muito bom, escrito pelo Professor Brandão, "O que é o Método Paulo Freire" (coleção primeiros passos), por exemplo. Mas o que é fundamental é fazer. É lançar-se numa prática e ir aprendendo-reaprendendo, criando-recriando, com o povão. Isso é que ensina a gente. Agora, se há possibilidade de bater um papo com quem tem prática ou com quem já teve prática, ou com quem tem uma fundamentação teórica a propósito, a experiência é excelente. Mas eu me comprometo a fazer isso. Eu acho válido. A minha assessoria em certo sentido. Agora, o que é preciso é fazer assim a gente vai tendo a sensação agradável de estar descobrindo as coisas com o povo. Então, aí eu tenho a impressão de que hoje não caberia uma palestra sobre o método. Não para isso que eu vim aqui.
Mas eu tenho a impressão que poderia colocar a nós, e não a vocês porque eu coloco a mim também alguns elementos, chamemos até de princípios. Estes princípios são válidos não apenas prá quem está metido com a alfabetização, mas prá quem está participando em qualquer tipo de pastoral. Não importa se está fazendo alfabetização de adultos ou trabalhando na pastoral operária, qualquer uma que seja. É válido até prá quem é médico e trabalha com o povão".

NINGUÉM ESTÁ SÓ NO MUNDO

O primeiro princípio que eu acho que seria interessante salientar aqui é o seguinte:
Enquanto educadores, educadoras, devemos estar muito convencidos de uma coisa que é óbvia: e de que NINGUEM ESTÁ SÓ NO MUNDO. Dá até prá dizer mas Paulo, como é que você foi arranjar um negócio tão besta desses? Claro que todo mundo aqui está sabendo que ninguém está só. Mas, vamos ver que implicações a gente tira da constatação, porque isso é uma constatação, ninguém precisa pesquisar.
Agora, o que é fundamental não é, portanto, fazer uma constatação. Fazer a constatação é muito fácil. Basta estar aqui, estar vivo. O que é importante é encarnar essa constatação com um bando de conseqüência, um bando de implicações. A primeira delas, sobretudo no campo da educação, que é o nosso, é a de que ninguém está só, é porque os seres humanos estão com o mundo e com outros seres.

"ESTAR COM OS OUTROS SIGNIFICA NECESSARIAMENTE RESPEITAR

NOS OUTROS O DIREITO DE DIZER A PALAVRA".
Aí já começa a embananar prá quem tem uma posição nada humilde, de quem pensa que conhece a verdade toda, e, portanto, tem que meter na cabeça de quem não tem a verdade.
Isso tem uma implicação no campo da teologia que eu acho muito importante. Mas não vamos discutir isso hoje. Eu gosto de falar dessas coisas também porque no fundo eu sou um teólogo, porque sou um sujeito desperto, um homem em busca da preservação da sua fé. E é inviável procurar preservar a fé sem fazer teologia, quer dizer, sem ligar, sem ter um papo com Deus. A minha vantagem é que nunca fiz um curso de Teologia Sistemática, então ai eu posso cometer heresias maravilhosas.
SABER OUVIR
Voltando aquele negócio: a primeira implicação profunda e rigorosa que surge quando eu encarno que não estou só, é exatamente o direito e o dever que eu tenho de respeitar em ti o direito de você dizer a palavra também. Isso significa então que é preciso eu também saber ouvir. Na medida, porém, em que eu parto do reconhecimento do teu direito de dizer a palavra, quando eu te falo porque te ouvi, eu faço mais do que falar a ti, eu falo contigo. Eu não sei se estou complicando. E veja bem, eu não estou fazendo jogo de palavras. Estou usando palavras. Veja que eu usei a preposição A, "falar A ti". Mas disse que o "falar A ti" só se converte no falar contigo se eu Te escuto. Vejam como no Brasil está cheio de gente falando prá gente, mas não com a gente. Faz 480 anos que o povão brasileiro leva porrete.
Então vejam bem o que é que tem que ver com o trabalho do educador. Vejam lá, numa posição autoritária, evidentemente, a educadora/educador, falam ao povo. Falam ao estudante. O que é terrível é ver um montão de gente que se proclama de esquerda e continua falando ao povo e não com o povo, numa contradição extraordinária com a própria posição da esquerda. Porque o correto da direita é falar ao povo, enquanto o correto da esquerda é falar com o povo. Pois bem, esse "trequinho" eu acho de uma importância enorme. Então essa é a primeira conclusão que eu acho que a gente tira quando a gente percebe que não está só no mundo.

O QUE É O MÉTODO PAULO FREIRE?

Mas quando a gente encarna e vive este não estar só no mundo, isso tem a ver com o chamado Método Paulo Freire. Mas eu não gosto de falar nisso, que é um negócio chato prá burro. Porque isso, no fundo, não é Método, não é nada, isso é uma CONCEPÇÃO DO MUNDO, que tá aí, é uma pedagogia, e não um método cheio de técnicas. Eu acho que a gente sabe muito mais as coisas quando a gente aprende o significado disso que eu disse e põe em prática, do que quando tá pensando no "ba-be-bi-bo-bu". O "ba-be-bi-bo-bu", só se encarna quando esse outro princípio é respeitado. Veja bem, se alfabetizador não está sobretudo disposto a viver com o alfabetizado uma experiência na qual o alfabetizando diz a sua palavra ao alfabetizador e não apenas escuta a do alfabetizador, a alfabetização se autentica, tendo no alfabetizando um criador da sua aprendizagem (toda vez que eu não for claro vocês digam, porque cansaço cobra a gente). Pois bem. Esse é um princípio que eu acho fundamental.
Agora, outra conseqüência disso, desse falar A e falar COM: eu só falo COM na medida em que eu escuto também.

"EU SÓ ECUTO NA MEDIDA EM QUE EU RESPEITO,

INCLUSIVE O QUE FALA ME CONTRADIZENDO".
Porque se a gente só escuta o que concorda com a gente, puxa! È exatamente o que tá aí no poder. Quer dizer, desde que vocês aceitam as regras do jogo a abertura prossegue. Eu gosto muito de anedotas, inclusive as anedotas chamadas feias, que são tão bonitas. Quando eu era muito moço, me contaram uma estória que se deu, dizem com Henry Ford. Diz que um dia Henry Ford reuniu os técnicos dele, os assessores, etc., e disse:
"Olha, vamos (deve ter sido em Detroit), vamos discutir aqui o problema do modelo novo dos carros Ford". Então os técnicos começaram: "Sr. Henry, vamos dar um jeito de acabar com esses carros só pretos, feios, danados, vamos atacar de carros marrom, carro verde, carro azul, mudar o estilo, fazer um negócio mais dinâmico. "Então quando deu 5 horas dizem que o Henry Ford disse: "Olhe, eu tenho um negócio agora, vamos fazer o seguinte: amanhã a gente se reúne aqui às 5 horas para decidir esse negócio". No dia seguinte, às 15 para 5 horas os assessores estavam todos na sala e às 10 prás 5 horas a secretária de Ford entrou na sala e disse: "Senhores, o Sr. Ford não pode vir à essa reunião, mas ele pede que o senhores se reúnam e ele diz que concorda com os senhores, desde que seja preta a cor dos carros". Isso é exatamente o que está aí. Se o povo brasileiro concordar que a abertura deve ser assim, ela existe, se não... É uma coisa extraordinária isso! Uma coisa fantástica! Mas existe, tá aí.
Então, eu falo contigo quando sou capaz de escutar, e se não sou capaz, eu falo "A" ti. No falar "A" e no falar "SOBRE", falar "A" significa falar em torno, eu falo a ti sobre a situação tal. Se eu, falo contrário, escuto também, então a conseqüência é a mesma para um trabalho de alfabetização de adultos, educação sanitária, saúde, discussão do evangelho, de religiosidade popular, etc. Se eu me convenci desse falar COM, desse escutar, meu trabalho parte sempre das condições concretas a que o povo está. O meu trabalho parte sempre dos níveis e das maneiras e nunca da maneira como eu entendo a realidade. Tá claro assim?

DESMONTAR A VISÃO MÁGICA

Vou dar um exemplo bem concreto. Quando eu tinha 7 anos eu já não acreditava que a miséria era punição de Deus pra quem tinha cometido pecado. Então vocês hão de convir comigo que já faz muito tempo que eu não acredito nisso. Mas, vamos admitir que eu chegue pra trabalhar numa certa área, cujo nível de repressão e opressão, de espoliação da comunidade é tal, que por necessidade, inclusive de sobrevivência coletiva essa comunidade afoga-se em toda uma visão alienada do mundo. Nessa visão Deus é o responsável por aquela miséria e não o sistema que está aí. Nesse nível de consciência de percepção da realidade é preciso às vezes acreditar que é Deus mesmo, porque sendo Deus, o problema passa a ter uma causa superior. É melhor acreditar que é Deus, porque aí não se tem a necessidade de brigar com medo de morrer, do que acreditar que não é Deus.
Esta é uma realidade que existe. Eu não sei como é que os jovens da esquerda não percebem esse treco ainda sô!
Então não é possível chegar a uma área como essa e fazer um discurso sobre a luta de classe. Não dá, mas não dá mesmo! É absoluta inconsciência teórica científica. É ignorância da ciência, fazer um treco desses. É claro que um dia vai chegar o negócio da classe, mas é impossível enquanto não se desmontar a visão mágica, a compreensão mágica. Porque vê bem, se houvesse uma possibilidade de uma participação ativa, de uma prática política imediata, essa visão se acabaria.

"ENTÃO É UMA VIOLÊNCIA VOCÊ QUERER ESQUECER QUE A COMUNIDADE AINDA NÃO TEM A POSSIBILIDADE DE UM ENGAJAMENTO EMEDIATO"

Aí então o que acontece é que você vai falar A comunidade e não COM a comunidade. Você faz um discurso brabo danado. E o que você faz com esse discurso? Cria mais medo. Mete mais medo na cabeça da população. Quer dizer, que o que a gente tem que fazer é partir exatamente do nível em que a massa está.
Diante de um caso como esse há duas possibilidades:
A PRIMEIRA é a gente se acomodar ao nível da compreensão que a comunidade tem, e a gente passa a dizer que na verdade é Deus mesmo que quer dizer isso. Essa a primeira possibilidade de errar; 
A SEGUNDA possibilidade de errar é arrebentar com Deus dizer que o culpado é o imperialismo. Vejam a falta de senso desse pessoal. Porque no fundo isso é falta de compreensão do fenômeno humano, da espoliação e das suas raízes. Engraçado, se fala tanto em dialética e não se é dialético. (Dialético é o processo do conhecimento pelo qual se acerta o caminho certo através de um processo de reflexão em cima da realidade ou prática). 
"Vamos ver o que acontece na cabeça das pessoas. Se Deus é o responsável e Deus é um caboclo danado de forte, o criador desse treco todinho, o que é que não pode gerar na cabeça de uma cara desses se a gente chega e diz que não é Deus. A gente tem que brigar contra uma situação feita por um ser tão poderoso como este e ao mesmo tempo tão justo. Essa ambigüidade que tá aí significa pecar. Então a gente ainda mete mais sentimento de culpa, só na cabeça da massa popular".


DEUS É O CULPADO

"O que a gente tem que fazer num caso como este é aceitar, e eu me lembro por exemplo, que antes do golpe de Estado quando eu trabalhava no Nordeste, de um bate-papo que eu tive com um grupo de camponeses em que a coisa foi essa: Dentro de poucos minutos os camponeses se calaram e houve um silêncio muito grande e em certo momento um deles disse: "O senhor me desculpa, mas o senhor é que devia falar e não nóis". Eu disse: "Por que?" Ele disse: "Porque o senhor é que sabe i nóis não sabemos". Eu então disse: OK, eu aceito que eu sei e vocês não sabem. Mas porque é que eu sei e vocês não sabem?". Então vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me sobrepor a posição deles. Eu aceitei a posição deles mas ao mesmo tempo indaguei sobre eles. Ele voltaram ao papo e aí, respondeu um camponês e disse: "O senhor sabe por que o senhor foi à escola e nós não fomos". Eu disse: "Eu aceito, eu fui à escola e vocês não foram, mas porque é que eu fui à escola e vocês não foram? Ah! O senhor foi porque seus pais puderam e os nossos não". Eu disse. "Muito bem eu concordo, mas porquê os meus pais puderam e os de vocês não puderam?" – "Ah! O senhor pode porque tinha condição, bom trabalho, tinha um emprego e os nossos não". "Eu aceito, mas porque os meus tinham e os de vocês não?" "Ah! porque os nossos eram camponeses". Aí um deles disse : "O meu avô era camponês, o meu pai era camponeses" eu sou camponês, meu filho é camponês, meu neto vai ser camponês! (aí vem a concepção fatalista da história) "o que é ser camponês?" – "Ah! camponês é não ter nada. É ser explorado". Eu disse: Mas, que é que explica isso tudo?" Ele disse: “Ah! É Deus? É Deus que quis que o senhor tivesse e nós não”. Eu disse: "Ok, eu concordo. Deus é um cara bacana! É um sujeito poderoso! Agora, eu queria fazer uma pergunta: "Quem aqui é pai?" Todo mundo era. Olhei assim, prá um e disse: "Você quantos filhos têm? Ele disse: "Tenho seis". Eu disse: "Vem cá, você era capaz de botar 6 aqui no trabalho forçado e mandar 1 para Recife, tendo tudo lá? Comida, hotel para estudar e ser doutor? E os 5 aqui morrendo no porrete, no sol?" Ele disse: "Eu não fazia isto não".
"Então você acha que Deus que é poderoso, que é pai, ia tirar essa oportunidade a vocês? Será que pode?" . Aí houve um silêncio e disseram: "É não, não é Deus nada, é o patrão!". Quer dizer, aí sim. Seria uma idiotice minha se eu dissesse que é patrão imperialista yanque. E o cabra ia dizer: "O que é, onde mora esse homem?". Olha, a transformação social se faz com ciência, com consciência, bom senso, humildade, criatividade e coragem. Vê que é trabalhoso, né? Não se faz isso na marra, no peito. O voluntarismo nunca fez revolução em canto nenhum. Nem espontaneismo tampouco. Implica em CONVIVÊNCIA COM AS MASSAS POPULARES e não distância delas. Então esse é o outro princípio que eu deixaria aqui.

NINGUÉM SABE TUDO, NINGUÉM IGNORA TUDO

Outro princípio, que a gente tira daquele COM e do A, é o seguinte: é que ninguém sabe tudo nem ninguém ignora tudo, e que equivale dizer, não há, em termos humanos, sabedoria absoluta nem ignorância absoluta.
Eu me lembro, por exemplo, de um jogo que eu fiz no Chile, no interior, numa casa camponesa, onde os camponeses também estavam inibidos sem querer discutir comigo, dizendo que eu era doutor. Eu disse que não e propus um jogo que era o seguinte: Eu peguei um giz, fui pro quadro negro e disse: "Eu faço uma pergunta a vocês e, se vocês não souberem, eu marco um gol. Em seguida, vocês fazem uma pergunta pra mim, e seu eu não souber, vocês marcam um gol".
Quem vai fazer a primeira pergunta sou eu; eu vou dar o primeiro chute. E então, de propósito, eu disse: Eu gostaria de saber o que é hermenêutica socrática? Já disse mesmo um treco difícil, treco que veio de mim, um intelectual. Eles ficaram rindo não sabiam lá o que era isso. Aí eu botei um gol pra mim. Agora é vocês. Um deles se levanta de lá e me faz uma pergunta sobre semeadura. Eu não entendia pipocas! Como semear num o que... Aí eu perdi, foi um a um. Aí eu disse, a segunda pergunta: O que é alienação em Hegal? Aí dois a um. Aí eles levantaram de lá e me fizeram uma pergunta sobre praga. Foi um negócio maravilhoso. Chegou a 10 a 10, e os caras se convenceram no final do jogo que, na verdade ninguém sabe tudo e ninguém sabe nada.

ELITISMO

Mas isso que a nível teórico, o intelectual diz, a gente precisa é viver! É essa a minha ênfase. Todo mundo aqui sabe que não está só no mundo. OK, mas é preciso viver a conseqüência disso, sobretudo se a opção é libertadora. O que é preciso é encarnar isso, sobretudo quando a gente se aproxima da massa popular. E muitos de nós vão à massa popular arrogantemente, elitistamente, para salvar a massa inculta, incompetente, incapaz; isso é um absurdo! Porque inclusive, não é científico. Há uma sabedoria que se constitui na massa popular pela prática.

BASISMO

Agora há também um outro equívoco, que é o que também se chama de "basismo". Ou vocês estão dentro da base, o dia todo, a noite toda, mora lá, morre lá, ou não dá palpite nunca! Conversa fiada, esse treco também não tá certo, não. Esse negócio de superestimar a massa popular é um etilismo às avessas. Não há porque fazer isso não sô! Eu de mão fina, a sociedade burguesa em que eu me constitui como intelectual não poderia me ter feito diferentemente. E eu sou humilde pra aceitar uma verdade histórica que é o meu limite histórico, eu então me suicido! E eu não vou me suicidar, porque é dentro dessa contradição que eu me forjo como um novo tipo de intelectual. Então eu entendo esse treco. E tenho uma contribuição a dar à massa popular. Nós temos uma contribuição a dar.
Agora prá mim o que é fundamental é o seguinte: é que essa contribuição só é válida na medida em que eu sou capaz de partir do nível em que a massa está, e, portanto, de aprender com ela. Se não for assim, então, a minha contribuição não muda nada, ou pelo menos vale muito pouco. Então esse é o outro princípio independentemente de tecnicazinha de ba-be-bi-bo-bu. Quer dizer, é esse estar COM o povo e não simplesmente PARA ELE e jamais SOBRE ELE. É o que caracteriza uma postura realmente libertadora. E bacana era se a gente tivesse tempo de ir mostrando essas afirmações à luz da experiência para perceber o que significam.

ASSUMIR A INGENUIDADE DO EDUCANDO

Mas outro princípio que eu acho fundamental é a capacidade que a gente tem de assumir a ingenuidade do educando, seja ele universitário ou popular. Eu estou cansado de me defrontar nas universidades onde eu trabalho, com igualdades, com perguntas que às vezes eu não entendo. Mas não entendo porque o cara que está fazendo a pergunta não sabe fazer. Agora vocês imaginem o seguinte: que pedagogo seria eu se, ao ouvir uma pergunta mal formulada, desorganizada e sem sentido, eu respondesse com ironia. Que direito teria eu em dizer que sou um educador que pensa em liberdade e respeito? De maneira nenhuma. E às vezes me sinto numa situação meio difícil porque o estudante coloca a questão e eu realmente não estou entendendo. Quando isso se dá nos EUA, eu até tenho a chance de dizer: "Eu não entendo bem Inglês, poderia repetir? Mas aqui eu não posso dizer: "Olha eu não entendo bem o português". Então eu digo pro estudante: "Olha eu vou repetir a sua pergunta e presta atenção prá ver se eu não distorço o espírito da tua pergunta. Se eu distorcer você me diz". Então eu repito a pergunta que ele me fez, reformulando de maneira mais clara como eu penso que entendi. Aí o estudante diz: "Era isso mesmo o que eu queria perguntar, só que não tava era sabendo". Eu digo: Ah! então ótimo! "Mas se eu digo: "Não, o senhor é um idiota", com que autoridade eu poderia dizer isso ao jovem estudante? Que sabedoria tenho eu prá dizer isso? Quem sou eu? Então esse é outro treco que eu encontro de absolutamente fundamental.

"NA MEDIDA EM QUE VOCÊ ASSUME A POSIÇÃO INGÊNUA DO EDUCANDO, VOCÊ SUPERA ESSA POSIÇÃO COM ELE, E NÃO SOBRE ELE".

Mas se é fundamental assumir a ingenuidade do educando, é absolutamente indispensável assumir a criticidade do educando diante da nossa ingenuidade de educador. Esse é o outro lado da medalha para o educador auto-suficiente. Só o educando nunca é. No fundo ele é que é ingênuo, porque a ingenuidade se caracteriza pela alienação de si mesmo ao outro. Pela transferência de si em alguém para o outro. Eu não sou ingênuo. O patrício é que é ingênuo. Eu transfiro prá ele a minha ingenuidade. Eu sou crítico na medida em que eu também acredito que eu também sou ingênuo, porque não há nenhuma absolutização da criticidade. Então o educador que não faz esse jogo dialético, contraditório dinâmico, ele, prá mim não trabalha pela e para a LIBERTAÇÃO.

O EDUCADOR É UM ATO POLÍTICO

Prá terminar essa série de considerações, eu diria a vocês o seguinte: tudo isso é política, porque no fundo, a EDUCAÇÃO É UM ATO POLÍTICO! Educação é tanto um ato político quanto um ato político educativo. Não é possível negar de um lado a politicidade da educação e do outro a educabilidade do ato político. E é nesse sentido que todo partido é um educador sempre. Mas depende de que Educação é essa que esse partido faz. Depende de com que ele está. A favor de quê está o educador ou a educadora? Então se a educação é sempre um ato político, a questão fundamental que se coloca prá mim é a seguinte:

"O EDUCADOR, A EDUCADORA, SOMOS TODOS POLÍTICOS? O QUE É IMPORTANTE SABER AGORA É SE A POLÍTICA QUE NÓS FAZEMOS ESTÁ A FAVOR DE QUEM? QUAL É A NOSSA OPÇÃO?
E clareada a nossa opção, então a gente vai ter que ser coerente com ela: aí é que fecha o cerco. Porque não adianta o discurso revolucionário com uma prática educacionária. Não adianta que eu passe uma noite fazendo esse curso aqui, e depois vá à área da favela salvar os favelados com minha ciência, em lugar de aprender com os favelados a ciência deles.

"PORQUE NA VERDADE, MEUS AMIGOS, NÃO É O DISCURSO QUE DIZ SE A PRÁTICA É VALIDA. É A PRÁTICA QUE DIZ SE O
DISCURSO É VALIDO, OU NÃO É"

Então, quem ajuíza é a prática, sempre, e não o discurso. E não adianta um lindo sermão ao qual se segue uma prática reacionária. Não adianta uma proposta revolucionária se no dia seguinte a minha prática é pequena burguesa. Isso é o que eu acho que é fundamental.

A CORAGEM DE CORRER O RISCO

Agora, é claro, que prá aqueles que estão metidos em alfabetização de adultos, há um bocado de coisinhas que não foi dita aqui, que deve ser aprendida e que deve ser feita. Por exemplo: como é que você faz a descodificação de uma palavra? Como é que você acha uma palavra melhor? Como é que você codifica? O que significa codificar? O que significa descodificar? Há uma série de outras coisas, mas eu diria a vocês, que o fundamental é essa coerência com a opção de correr o risco. Porque a Educação Libertadora, ou ela é uma aventura permanente ou não é criador. Não há criação sem risco. O que a gente tem que fazer é reinventar as coisas.

A MARCA DO AUTORITARISMO

Temos que combater em todos nós uma marca trágica que nós carregamos os brasileiros e as brasileiras, que é a do autoritarismo que marcou os primórdios do nosso nascimento. O Brasil foi inventado autoritariamente. E é autoritariamente que ele continua. Não é de se espantar de maneira nenhuma que abertura se faça autoritariamente. Eu ontem fiz um discurso em Goiânia, no Congresso Brasileiro de Professores, em que eu lí uma série de textos começando por um sermão fantástico do Pe. Vieira, durante a guerra dos holandeses. Eu comecei por aí porque não tive tempo de ir mais a fundo. Eu passei uns 10 minutos lendo um trechinho de um sermão maravilhoso em que o Pe. Vieira fala ao vice-rei do Brasil, Marquês de Montalvan, no Hospital da Misericórdia, na Bahia.
Ele dizia uma coisa muito bonita: em nenhum milagre Cristo gastou mais tempo, nem mais trabalho teve do que em curar o endemoniado mudo. E esta tem sido a grande enfermidade deste país: o silêncio a que tem sempre submetido o povo. O que Vieira não disse e porque inclusive ele não faria essa análise de classe tão cedo, é que, sobretudo nesse país, quem tem sido mudo é a classe popular, as classes trabalhadoras. Quer dizer, não mudo no sentido de não fazer nada. Elas têm feito a sua rebelião constante. As lutas populares nesse país são coisas maravilhosas! Só que a historiografia oficial, em primeiro lugar, esconde as lutas populares. Em segundo lugar, quando conta, conta distorcidamente. Em terceiro lugar, o poder autoritário faz tudo prá gente esquecer. Mas essa é marca de autoritarismo nesse país.
Outro trechinho que eu citei é o discurso de Joaquim Nabuco no parlamento, sobre a mudança da constituição. Tem 103 anos de discurso. Ele só não usou a palavra pacote, mas o resto é dele. Igualzinho! Cópia e tá hoje, publicada na folha de São Paulo e é de hoje. Vocês já imaginaram como nós somos autoritários, os intelectuais desse país, inclusive quando somos da esquerda? Mas o autoritarismo nosso se transformou na arrogância nossa, na sabedoria que a gente pensa que a gente tem, sobre a qual a gente fala, no comportamento da gente no seminário, no curso, nas exigências da leitura. O professor cita 40 livros num semestre e manda o estudante ler uns 200 capítulos a mais dos 40 livros. E o aluno não lê nem jornal. Pois isso eu venho me dizendo a mais de trinta anos.

COMECE A REAPRENDER DE NOVO
Se você pretende pra semana começar um trabalho, com grupos populares, esqueça-se de quase tudo o que já lhe ensinaram. Dispa-se, fique nú de novo e comece a se vestir com as massas populares. Esqueça-se da falsa sabedoria e comece a reaprender de novo. E aí é que vocês vão descobrir a validade daquilo que vocês sabem, na medida em que vocês testam o que vocês sabem com o que o povo está sabendo. Eu acho que isso aí que e o básico .
"Eu nunca escrevi nada do que tivesse feito. Nem carta eu posso fazer se eu não tiver algo importante sobre o que conversar. Então é uma das minhas boas limitações. Meus livros são sempre relatórios. Agora, é claro, são relatórios teóricos, feitos a partir da prática, então isso significa e seguinte: quem pretende trabalhar com esses relatórios que são os meus livros, deve sobretudo estar sempre disposto a recriar o que eu fiz, a refazer, e não só copiar, mas reinventar as coisas. Este treco inclusive é muito cristão. É nesse sentido que a gente participa da obra da criação e recriação do mundo com Deus. Eu faço uma força danada prá não deixar de cumprir essa tarefa. Esse negócio de receber coisinha de graça de Deus eu não gosto. E dar o duro também".

UMA EXPERIÊNCIA

Assim que cheguei da Europa, no ano passado, prá morar de novo no país, eu trabalhei um semestre com um grupo de jovens que fazia uma experiência numa comunidade de favelados. Eles fizeram durante alguns meses um trabalho exatamente como de vocês. Foi durante a construção de um barraco que eles fizeram uma experiência de alfabetização muito interessante. Depois eles sumiram de casa e bem depois apareceram de novo e me disseram: "Paulo, a coisa mais formidável que a gente tem prá dizer é que por mais que a gente tivesse lido você e conversado com você, a gente cometeu um erro tremendo. A gente tinha botado na cabeça da gente que o povo queria ser alfabetizado. Como a gente sugeriu ao povo que a alfabetização era importante, o povo passou seis meses com a gente falando daquilo por causa da gente. Depois que o povo ganhou intimidade com a gente dando risada eles falaram: "nóis nunca quis isso! "Vocês vejam, olha era uma equipe bacana que tinha lido tudo meu, que tinha discutido comigo um semestre. E eu também fui enrolado por ela. Essa equipe tá totalmente convencida do que o povo queria na verdade. Essa equipe tinha transferido ao povo a necessidade de alfabetização.
Isso é outra coisa, pois num país que há 480 anos o povão leva porrete, é a coisa mais fácil do mundo se você chega com pinta de intelectual e você termina insinuando, sugerindo que há uma necessidade que o povo deve atender a ela. O povo vai dizer: "É, senhor, o que eu quero". Então essa advertência que eu faço.

CONCLUSÃO

VIVER PACIENTEMENTE IMPACIENTE
Uma coisa que eu sempre falo e que poria agora num dos princípios que eu esqueci: O educador na opção que a gente pensa que tem, tem que viver pacientemente impaciente. Viver a relação entre impaciência e a paciência. Não é possível ser só impaciente como muita gente é. Querer fazer revolução daqui à quinta-feira. E meter na cabeça da gente um desenho da realidade que não existe, como esse, por exemplo: "as massas já tem o poder no Brasil, só falta o governo". Isso só existe na cabeça de alguém, não na realidade econômica, política e social do Brasil.

"A IMPACIÊNCIA SIGNIFICARIA A RUPTURA COM A PACIÊNCIA. ENTÃO QUANDO VOCÊ ROMPE COM UM DESSES DOIS POLOS
VOCÊ ROMPE EM FAVOR DE UM DELES".

“Se você rompe em favor da impaciência então você cai necessariamente no voluntarismo, e a concepção voluntarista da história é a negação dessa história..."

"... TÚ VIVES, MAS TRISTE
DUMA TAL TRISTEZA
TÃO SEM ÁGUA OU CARNE
TÃO AUSENTE, VAGO,
QUE PEGAR QUISERA
NA MÃO E DIZER-TE:
AMIGO, NÃO SABES
QUE EXISTE AMANHÃ?
ENTÃO UM SORRISO
NASCERA NO FUNDO
DE TUA MISÉRIA
E TE DESTINARA
À MELHOR SENTIDO
EXISTO, AMANHÃ
SERÁ OUTRO DIA,
PARA ELE VIAJAS.
VAMOS PARA ELE.
VENCESTE O DESGOSTO,
CALCASTE O INDIVÍDUO,
JÁ TEU PASSO AVANÇA
EM TERRA DIVERSA.
TEU PASSO
: OUTROS PASSOS
AO LADO DO TEU...
(Carlos Drummond de Andrade. Uma Hora, mais outra.)

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