COMO SE DÁ A RELAÇÃO
TEORIA E PRÁTICA?
O encontro com Paulo
Freire começou com uma discussão entre os participantes sobre a relação
teoria-prática. Em seguida, o Paulo passou a comentar as idéias abordadas.
Tentamos reproduzir as colocações dele no texto que segue abaixo:
"Em primeiro lugar, o
moço ali tem razão, quando afirmou que não se pode ficar só na teoria. O que
ensina a gente é fazer as coisas. É a prática da gente. É claro, não faz mal nenhum
que se leia um livro ou outro. Há um livrinho aí muito bom, escrito pelo
Professor Brandão, "O que é o Método Paulo Freire" (coleção primeiros
passos), por exemplo. Mas o que é fundamental é fazer. É lançar-se numa prática
e ir aprendendo-reaprendendo, criando-recriando, com o povão. Isso é que ensina
a gente. Agora, se há possibilidade de bater um papo com quem tem prática ou
com quem já teve prática, ou com quem tem uma fundamentação teórica a
propósito, a experiência é excelente. Mas eu me comprometo a fazer isso. Eu
acho válido. A minha assessoria em certo sentido. Agora, o que é preciso é
fazer assim a gente vai tendo a sensação agradável de estar descobrindo as
coisas com o povo. Então, aí eu tenho a impressão de que hoje não caberia uma
palestra sobre o método. Não para isso que eu vim aqui.
Mas eu tenho a impressão
que poderia colocar a nós, e não a vocês porque eu coloco a mim também alguns
elementos, chamemos até de princípios. Estes princípios são válidos não apenas
prá quem está metido com a alfabetização, mas prá quem está participando em
qualquer tipo de pastoral. Não importa se está fazendo alfabetização de adultos
ou trabalhando na pastoral operária, qualquer uma que seja. É válido até prá
quem é médico e trabalha com o povão".
NINGUÉM ESTÁ SÓ NO MUNDO
O primeiro princípio que
eu acho que seria interessante salientar aqui é o seguinte:
Enquanto educadores,
educadoras, devemos estar muito convencidos de uma coisa que é óbvia: e de que
NINGUEM ESTÁ SÓ NO MUNDO. Dá até prá dizer mas Paulo, como é que você foi
arranjar um negócio tão besta desses? Claro que todo mundo aqui está sabendo
que ninguém está só. Mas, vamos ver que implicações a gente tira da
constatação, porque isso é uma constatação, ninguém precisa pesquisar.
Agora, o que é fundamental
não é, portanto, fazer uma constatação. Fazer a constatação é muito fácil.
Basta estar aqui, estar vivo. O que é importante é encarnar essa constatação
com um bando de conseqüência, um bando de implicações. A primeira delas,
sobretudo no campo da educação, que é o nosso, é a de que ninguém está só, é
porque os seres humanos estão com o mundo e com outros seres.
"ESTAR COM OS OUTROS SIGNIFICA NECESSARIAMENTE RESPEITAR
NOS OUTROS O DIREITO DE DIZER A PALAVRA".
Aí já começa a embananar
prá quem tem uma posição nada humilde, de quem pensa que conhece a verdade
toda, e, portanto, tem que meter na cabeça de quem não tem a verdade.
Isso tem uma implicação no
campo da teologia que eu acho muito importante. Mas não vamos discutir isso
hoje. Eu gosto de falar dessas coisas também porque no fundo eu sou um teólogo,
porque sou um sujeito desperto, um homem em busca da preservação da sua fé. E é
inviável procurar preservar a fé sem fazer teologia, quer dizer, sem ligar, sem
ter um papo com Deus. A minha vantagem é que nunca fiz um curso de Teologia
Sistemática, então ai eu posso cometer heresias maravilhosas.
SABER OUVIR
Voltando aquele negócio: a
primeira implicação profunda e rigorosa que surge quando eu encarno que não
estou só, é exatamente o direito e o dever que eu tenho de respeitar em ti o
direito de você dizer a palavra também. Isso significa então que é preciso eu
também saber ouvir. Na medida, porém, em que eu parto do reconhecimento do teu
direito de dizer a palavra, quando eu te falo porque te ouvi, eu faço mais do
que falar a ti, eu falo contigo. Eu não sei se estou complicando. E veja bem,
eu não estou fazendo jogo de palavras. Estou usando palavras. Veja que eu usei
a preposição A, "falar A ti". Mas disse que o "falar A ti"
só se converte no falar contigo se eu Te escuto. Vejam como no Brasil está
cheio de gente falando prá gente, mas não com a gente. Faz 480 anos que o povão
brasileiro leva porrete.
Então vejam bem o que é
que tem que ver com o trabalho do educador. Vejam lá, numa posição autoritária,
evidentemente, a educadora/educador, falam ao povo. Falam ao estudante. O que é
terrível é ver um montão de gente que se proclama de esquerda e continua
falando ao povo e não com o povo, numa contradição extraordinária com a própria
posição da esquerda. Porque o correto da direita é falar ao povo, enquanto o
correto da esquerda é falar com o povo. Pois bem, esse "trequinho" eu
acho de uma importância enorme. Então essa é a primeira conclusão que eu acho
que a gente tira quando a gente percebe que não está só no mundo.
O QUE É O MÉTODO PAULO FREIRE?
Mas quando a gente encarna
e vive este não estar só no mundo, isso tem a ver com o chamado Método Paulo
Freire. Mas eu não gosto de falar nisso, que é um negócio chato prá burro.
Porque isso, no fundo, não é Método, não é nada, isso é uma CONCEPÇÃO DO MUNDO,
que tá aí, é uma pedagogia, e não um método cheio de técnicas. Eu acho que a
gente sabe muito mais as coisas quando a gente aprende o significado disso que
eu disse e põe em prática, do que quando tá pensando no
"ba-be-bi-bo-bu". O "ba-be-bi-bo-bu", só se encarna quando
esse outro princípio é respeitado. Veja bem, se alfabetizador não está
sobretudo disposto a viver com o alfabetizado uma experiência na qual o
alfabetizando diz a sua palavra ao alfabetizador e não apenas escuta a do
alfabetizador, a alfabetização se autentica, tendo no alfabetizando um criador
da sua aprendizagem (toda vez que eu não for claro vocês digam, porque cansaço
cobra a gente). Pois bem. Esse é um princípio que eu acho fundamental.
Agora, outra conseqüência
disso, desse falar A e falar COM: eu só falo COM na medida em que eu escuto
também.
"EU SÓ ECUTO NA MEDIDA EM QUE EU RESPEITO ,
INCLUSIVE O QUE FALA ME CONTRADIZENDO".
Porque se a gente só
escuta o que concorda com a gente, puxa! È exatamente o que tá aí no poder.
Quer dizer, desde que vocês aceitam as regras do jogo a abertura prossegue. Eu
gosto muito de anedotas, inclusive as anedotas chamadas feias, que são tão
bonitas. Quando eu era muito moço, me contaram uma estória que se deu, dizem
com Henry Ford. Diz que um dia Henry Ford reuniu os técnicos dele, os
assessores, etc., e disse:
"Olha, vamos (deve
ter sido em Detroit), vamos discutir aqui o problema do modelo novo dos carros
Ford". Então os técnicos começaram: "Sr. Henry, vamos dar um jeito de
acabar com esses carros só pretos, feios, danados, vamos atacar de carros marrom,
carro verde, carro azul, mudar o estilo, fazer um negócio mais dinâmico.
"Então quando deu 5 horas dizem que o Henry Ford disse: "Olhe, eu
tenho um negócio agora, vamos fazer o seguinte: amanhã a gente se reúne aqui às
5 horas para decidir esse negócio". No dia seguinte, às 15 para 5 horas os
assessores estavam todos na sala e às 10 prás 5 horas a secretária de Ford
entrou na sala e disse: "Senhores, o Sr. Ford não pode vir à essa reunião,
mas ele pede que o senhores se reúnam e ele diz que concorda com os senhores,
desde que seja preta a cor dos carros". Isso é exatamente o que está aí.
Se o povo brasileiro concordar que a abertura deve ser assim, ela existe, se
não... É uma coisa extraordinária isso! Uma coisa fantástica! Mas existe, tá
aí.
Então, eu falo contigo
quando sou capaz de escutar, e se não sou capaz, eu falo "A" ti. No
falar "A" e no falar "SOBRE", falar "A" significa
falar em torno, eu falo a ti sobre a situação tal. Se eu, falo contrário,
escuto também, então a conseqüência é a mesma para um trabalho de alfabetização
de adultos, educação sanitária, saúde, discussão do evangelho, de religiosidade
popular, etc. Se eu me convenci desse falar COM, desse escutar, meu trabalho
parte sempre das condições concretas a que o povo está. O meu trabalho parte
sempre dos níveis e das maneiras e nunca da maneira como eu entendo a
realidade. Tá claro assim?
DESMONTAR A VISÃO MÁGICA
Vou dar um exemplo bem
concreto. Quando eu tinha 7 anos eu já não acreditava que a miséria era punição
de Deus pra quem tinha cometido pecado. Então vocês hão de convir comigo que já
faz muito tempo que eu não acredito nisso. Mas, vamos admitir que eu chegue pra
trabalhar numa certa área, cujo nível de repressão e opressão, de espoliação da
comunidade é tal, que por necessidade, inclusive de sobrevivência coletiva essa
comunidade afoga-se em toda uma visão alienada do mundo. Nessa visão Deus é o
responsável por aquela miséria e não o sistema que está aí. Nesse nível de
consciência de percepção da realidade é preciso às vezes acreditar que é Deus
mesmo, porque sendo Deus, o problema passa a ter uma causa superior. É melhor
acreditar que é Deus, porque aí não se tem a necessidade de brigar com medo de
morrer, do que acreditar que não é Deus.
Esta é uma realidade que
existe. Eu não sei como é que os jovens da esquerda não percebem esse treco
ainda sô!
Então não é possível
chegar a uma área como essa e fazer um discurso sobre a luta de classe. Não dá,
mas não dá mesmo! É absoluta inconsciência teórica científica. É ignorância da
ciência, fazer um treco desses. É claro que um dia vai chegar o negócio da
classe, mas é impossível enquanto não se desmontar a visão mágica, a
compreensão mágica. Porque vê bem, se houvesse uma possibilidade de uma
participação ativa, de uma prática política imediata, essa visão se acabaria.
"ENTÃO É UMA VIOLÊNCIA VOCÊ QUERER ESQUECER QUE A COMUNIDADE AINDA NÃO TEM
A POSSIBILIDADE DE UM ENGAJAMENTO EMEDIATO"
Aí então o que acontece é
que você vai falar A comunidade e não COM a comunidade. Você faz um discurso
brabo danado. E o que você faz com esse discurso? Cria mais medo. Mete mais
medo na cabeça da população. Quer dizer, que o que a gente tem que fazer é
partir exatamente do nível em que a massa está.
Diante de um caso como
esse há duas possibilidades:
A PRIMEIRA é a gente se
acomodar ao nível da compreensão que a comunidade tem, e a gente passa a dizer
que na verdade é Deus mesmo que quer dizer isso. Essa a primeira possibilidade
de errar;
A SEGUNDA possibilidade de errar é arrebentar com Deus dizer que o culpado é o imperialismo.
Vejam a falta de senso desse pessoal. Porque no fundo isso é falta de
compreensão do fenômeno humano, da espoliação e das suas raízes. Engraçado, se
fala tanto em dialética e não se é dialético. (Dialético é o processo do
conhecimento pelo qual se acerta o caminho certo através de um processo de
reflexão em cima da realidade ou prática).
"Vamos ver o que acontece na cabeça das pessoas. Se Deus é o responsável e
Deus é um caboclo danado de forte, o criador desse treco todinho, o que é que
não pode gerar na cabeça de uma cara desses se a gente chega e diz que não é
Deus. A gente tem que brigar contra uma situação feita por um ser tão poderoso como
este e ao mesmo tempo tão justo. Essa ambigüidade que tá aí significa pecar.
Então a gente ainda mete mais sentimento de culpa, só na cabeça da massa
popular".
DEUS É O CULPADO
"O que a gente tem
que fazer num caso como este é aceitar, e eu me lembro por exemplo, que antes
do golpe de Estado quando eu trabalhava no Nordeste, de um bate-papo que eu
tive com um grupo de camponeses em que a coisa foi essa: Dentro de poucos
minutos os camponeses se calaram e houve um silêncio muito grande e em certo
momento um deles disse: "O senhor me desculpa, mas o senhor é que devia
falar e não nóis". Eu disse: "Por que?" Ele disse: "Porque
o senhor é que sabe i nóis não sabemos". Eu então disse: OK, eu aceito que
eu sei e vocês não sabem. Mas porque é que eu sei e vocês não sabem?".
Então vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me sobrepor a posição
deles. Eu aceitei a posição deles mas ao mesmo tempo indaguei sobre eles. Ele
voltaram ao papo e aí, respondeu um camponês e disse: "O senhor sabe por
que o senhor foi à escola e nós não fomos". Eu disse: "Eu aceito, eu
fui à escola e vocês não foram, mas porque é que eu fui à escola e vocês não
foram? Ah! O senhor foi porque seus pais puderam e os nossos não". Eu
disse. "Muito bem eu concordo, mas porquê os meus pais puderam e os de
vocês não puderam?" – "Ah! O senhor pode porque tinha condição, bom
trabalho, tinha um emprego e os nossos não". "Eu aceito, mas porque
os meus tinham e os de vocês não?" "Ah! porque os nossos eram
camponeses". Aí um deles disse : "O meu avô era camponês, o meu pai
era camponeses" eu sou camponês, meu filho é camponês, meu neto vai ser
camponês! (aí vem a concepção fatalista da história) "o que é ser
camponês?" – "Ah! camponês é não ter nada. É ser explorado". Eu
disse: Mas, que é que explica isso tudo?" Ele disse: “Ah! É Deus? É Deus
que quis que o senhor tivesse e nós não”. Eu disse: "Ok, eu concordo. Deus
é um cara bacana! É um sujeito poderoso! Agora, eu queria fazer uma pergunta:
"Quem aqui é pai?" Todo mundo era. Olhei assim, prá um e disse:
"Você quantos filhos têm? Ele disse: "Tenho seis". Eu disse:
"Vem cá, você era capaz de botar 6 aqui no trabalho forçado e mandar 1
para Recife, tendo tudo lá? Comida, hotel para estudar e ser doutor? E os 5
aqui morrendo no porrete, no sol?" Ele disse: "Eu não fazia isto
não".
"Então você acha que
Deus que é poderoso, que é pai, ia tirar essa oportunidade a vocês? Será que
pode?" . Aí houve um silêncio e disseram: "É não, não é Deus nada, é
o patrão!". Quer dizer, aí sim. Seria uma idiotice minha se eu dissesse
que é patrão imperialista yanque. E o cabra ia dizer: "O que é, onde mora
esse homem?". Olha, a transformação social se faz com ciência, com
consciência, bom senso, humildade, criatividade e coragem. Vê que é trabalhoso,
né? Não se faz isso na marra, no peito. O voluntarismo nunca fez revolução em
canto nenhum. Nem espontaneismo tampouco. Implica em CONVIVÊNCIA COM AS
MASSAS POPULARES e não distância delas. Então esse é o outro princípio que eu
deixaria aqui.
NINGUÉM SABE TUDO, NINGUÉM IGNORA TUDO
Outro princípio, que a
gente tira daquele COM e do A, é o seguinte: é que ninguém sabe tudo nem
ninguém ignora tudo, e que equivale dizer, não há, em termos humanos, sabedoria
absoluta nem ignorância absoluta.
Eu me lembro, por exemplo,
de um jogo que eu fiz no Chile, no interior, numa casa camponesa, onde os
camponeses também estavam inibidos sem querer discutir comigo, dizendo que eu
era doutor. Eu disse que não e propus um jogo que era o seguinte: Eu peguei um
giz, fui pro quadro negro e disse: "Eu faço uma pergunta a vocês e, se
vocês não souberem, eu marco um gol. Em seguida, vocês fazem uma pergunta pra
mim, e seu eu não souber, vocês marcam um gol".
Quem vai fazer a primeira
pergunta sou eu; eu vou dar o primeiro chute. E então, de propósito, eu disse:
Eu gostaria de saber o que é hermenêutica socrática? Já disse mesmo um treco
difícil, treco que veio de mim, um intelectual. Eles ficaram rindo não sabiam
lá o que era isso. Aí eu botei um gol pra mim. Agora é vocês. Um deles se
levanta de lá e me faz uma pergunta sobre semeadura. Eu não entendia pipocas!
Como semear num o que... Aí eu perdi, foi um a um. Aí eu disse, a segunda
pergunta: O que é alienação em Hegal? Aí dois a um. Aí eles levantaram de lá e
me fizeram uma pergunta sobre praga. Foi um negócio maravilhoso. Chegou a 10 a 10, e os caras se
convenceram no final do jogo que, na verdade ninguém sabe tudo e ninguém sabe
nada.
ELITISMO
Mas isso que a nível
teórico, o intelectual diz, a gente precisa é viver! É essa a minha ênfase.
Todo mundo aqui sabe que não está só no mundo. OK, mas é preciso viver a
conseqüência disso, sobretudo se a opção é libertadora. O que é preciso é
encarnar isso, sobretudo quando a gente se aproxima da massa popular. E muitos
de nós vão à massa popular arrogantemente, elitistamente, para salvar a massa
inculta, incompetente, incapaz; isso é um absurdo! Porque inclusive, não é
científico. Há uma sabedoria que se constitui na massa popular pela prática.
BASISMO
Agora há também um outro
equívoco, que é o que também se chama de "basismo". Ou vocês estão
dentro da base, o dia todo, a noite toda, mora lá, morre lá, ou não dá palpite
nunca! Conversa fiada, esse treco também não tá certo, não. Esse negócio de
superestimar a massa popular é um etilismo às avessas. Não há porque fazer isso
não sô! Eu de mão fina, a sociedade burguesa em que eu me constitui como
intelectual não poderia me ter feito diferentemente. E eu sou humilde pra
aceitar uma verdade histórica que é o meu limite histórico, eu então me
suicido! E eu não vou me suicidar, porque é dentro dessa contradição que eu me
forjo como um novo tipo de intelectual. Então eu entendo esse treco. E tenho
uma contribuição a dar à massa popular. Nós temos uma contribuição a dar.
Agora prá mim o que é
fundamental é o seguinte: é que essa contribuição só é válida na medida em que
eu sou capaz de partir do nível em que a massa está, e, portanto, de aprender
com ela. Se não for assim, então, a minha contribuição não muda nada, ou pelo
menos vale muito pouco. Então esse é o outro princípio independentemente de
tecnicazinha de ba-be-bi-bo-bu. Quer dizer, é esse estar COM o povo e não
simplesmente PARA ELE e jamais SOBRE ELE. É o que caracteriza uma postura
realmente libertadora. E bacana era se a gente tivesse tempo de ir mostrando
essas afirmações à luz da experiência para perceber o que significam.
ASSUMIR A INGENUIDADE DO EDUCANDO
Mas outro princípio que eu
acho fundamental é a capacidade que a gente tem de assumir a ingenuidade do
educando, seja ele universitário ou popular. Eu estou cansado de me defrontar
nas universidades onde eu trabalho, com igualdades, com perguntas que às vezes
eu não entendo. Mas não entendo porque o cara que está fazendo a pergunta não
sabe fazer. Agora vocês imaginem o seguinte: que pedagogo seria eu se, ao ouvir
uma pergunta mal formulada, desorganizada e sem sentido, eu respondesse com
ironia. Que direito teria eu em dizer que sou um educador que pensa em
liberdade e respeito? De maneira nenhuma. E às vezes me sinto numa situação
meio difícil porque o estudante coloca a questão e eu realmente não estou
entendendo. Quando isso se dá nos EUA, eu até tenho a chance de dizer: "Eu
não entendo bem Inglês, poderia repetir? Mas aqui eu não posso dizer:
"Olha eu não entendo bem o português". Então eu digo pro estudante:
"Olha eu vou repetir a sua pergunta e presta atenção prá ver se eu não
distorço o espírito da tua pergunta. Se eu distorcer você me diz". Então
eu repito a pergunta que ele me fez, reformulando de maneira mais clara como eu
penso que entendi. Aí o estudante diz: "Era isso mesmo o que eu queria
perguntar, só que não tava era sabendo". Eu digo: Ah! então ótimo!
"Mas se eu digo: "Não, o senhor é um idiota", com que autoridade
eu poderia dizer isso ao jovem estudante? Que sabedoria tenho eu prá dizer
isso? Quem sou eu? Então esse é outro treco que eu encontro de absolutamente
fundamental.
"NA MEDIDA EM QUE
VOCÊ ASSUME A POSIÇÃO INGÊNUA DO EDUCANDO, VOCÊ SUPERA ESSA
POSIÇÃO COM ELE, E NÃO SOBRE ELE".
Mas se é fundamental
assumir a ingenuidade do educando, é absolutamente indispensável assumir a
criticidade do educando diante da nossa ingenuidade de educador. Esse é o outro
lado da medalha para o educador auto-suficiente. Só o educando nunca é. No
fundo ele é que é ingênuo, porque a ingenuidade se caracteriza pela alienação
de si mesmo ao outro. Pela transferência de si em alguém para o outro. Eu não
sou ingênuo. O patrício é que é ingênuo. Eu transfiro prá ele a minha
ingenuidade. Eu sou crítico na medida em que eu também acredito que eu também
sou ingênuo, porque não há nenhuma absolutização da criticidade. Então o
educador que não faz esse jogo dialético, contraditório dinâmico, ele, prá mim
não trabalha pela e para a LIBERTAÇÃO.
O EDUCADOR É UM ATO POLÍTICO
Prá terminar essa série de
considerações, eu diria a vocês o seguinte: tudo isso é política, porque no
fundo, a EDUCAÇÃO É UM ATO POLÍTICO! Educação é tanto um ato político quanto um
ato político educativo. Não é possível negar de um lado a politicidade da
educação e do outro a educabilidade do ato político. E é nesse sentido que todo
partido é um educador sempre. Mas depende de que Educação é essa que esse
partido faz. Depende de com que ele está. A favor de quê está o educador ou a
educadora? Então se a educação é sempre um ato político, a questão fundamental
que se coloca prá mim é a seguinte:
"O EDUCADOR, A EDUCADORA, SOMOS TODOS POLÍTICOS? O QUE É
IMPORTANTE SABER AGORA É SE A POLÍTICA QUE NÓS FAZEMOS ESTÁ A FAVOR DE QUEM?
QUAL É A NOSSA OPÇÃO?
E clareada a nossa opção,
então a gente vai ter que ser coerente com ela: aí é que fecha o cerco. Porque
não adianta o discurso revolucionário com uma prática educacionária. Não
adianta que eu passe uma noite fazendo esse curso aqui, e depois vá à área da
favela salvar os favelados com minha ciência, em lugar de aprender com os
favelados a ciência deles.
"PORQUE NA VERDADE,
MEUS AMIGOS, NÃO É O DISCURSO QUE DIZ SE A PRÁTICA É VALIDA. É A PRÁTICA QUE
DIZ SE O
DISCURSO É VALIDO, OU NÃO
É"
Então,
quem ajuíza é a prática, sempre, e não o discurso. E não adianta um lindo
sermão ao qual se segue uma prática reacionária. Não adianta uma proposta
revolucionária se no dia seguinte a minha prática é pequena burguesa. Isso é o
que eu acho que é fundamental.
A CORAGEM DE CORRER O RISCO
Agora, é claro, que prá
aqueles que estão metidos em alfabetização de adultos, há um bocado de
coisinhas que não foi dita aqui, que deve ser aprendida e que deve ser feita.
Por exemplo: como é que você faz a descodificação de uma palavra? Como é que
você acha uma palavra melhor? Como é que você codifica? O que significa
codificar? O que significa descodificar? Há uma série de outras coisas, mas eu
diria a vocês, que o fundamental é essa coerência com a opção de correr o
risco. Porque a Educação Libertadora, ou ela é uma aventura permanente ou não é
criador. Não há criação sem risco. O que a gente tem que fazer é reinventar as
coisas.
A MARCA DO AUTORITARISMO
Temos que combater em
todos nós uma marca trágica que nós carregamos os brasileiros e as brasileiras,
que é a do autoritarismo que marcou os primórdios do nosso nascimento. O Brasil
foi inventado autoritariamente. E é autoritariamente que ele continua. Não é de
se espantar de maneira nenhuma que abertura se faça autoritariamente. Eu ontem
fiz um discurso em Goiânia, no Congresso Brasileiro de Professores, em que eu
lí uma série de textos começando por um sermão fantástico do Pe. Vieira,
durante a guerra dos holandeses. Eu comecei por aí porque não tive tempo de ir
mais a fundo. Eu passei uns 10 minutos lendo um trechinho de um sermão
maravilhoso em que o Pe. Vieira fala ao vice-rei do Brasil, Marquês de
Montalvan, no Hospital da Misericórdia, na Bahia.
Ele dizia uma coisa muito
bonita: em nenhum milagre Cristo gastou mais tempo, nem mais trabalho teve do
que em curar o endemoniado mudo. E esta tem sido a grande enfermidade deste
país: o silêncio a que tem sempre submetido o povo. O que Vieira não disse e
porque inclusive ele não faria essa análise de classe tão cedo, é que,
sobretudo nesse país, quem tem sido mudo é a classe popular, as classes trabalhadoras.
Quer dizer, não mudo no sentido de não fazer nada. Elas têm feito a sua
rebelião constante. As lutas populares nesse país são coisas maravilhosas! Só
que a historiografia oficial, em primeiro lugar, esconde as lutas populares. Em
segundo lugar, quando conta, conta distorcidamente. Em terceiro lugar, o poder
autoritário faz tudo prá gente esquecer. Mas essa é marca de autoritarismo
nesse país.
Outro trechinho que eu
citei é o discurso de Joaquim Nabuco no parlamento, sobre a mudança da
constituição. Tem 103 anos de discurso. Ele só não usou a palavra pacote, mas o
resto é dele. Igualzinho! Cópia e tá hoje, publicada na folha de São Paulo e é
de hoje. Vocês já imaginaram como nós somos autoritários, os intelectuais desse
país, inclusive quando somos da esquerda? Mas o autoritarismo nosso se
transformou na arrogância nossa, na sabedoria que a gente pensa que a gente tem,
sobre a qual a gente fala, no comportamento da gente no seminário, no curso,
nas exigências da leitura. O professor cita 40 livros num semestre e manda o
estudante ler uns 200 capítulos a mais dos 40 livros. E o aluno não lê nem
jornal. Pois isso eu venho me dizendo a mais de trinta anos.
COMECE A REAPRENDER DE
NOVO
Se você pretende pra
semana começar um trabalho, com grupos populares, esqueça-se de quase tudo o
que já lhe ensinaram. Dispa-se, fique nú de novo e comece a se vestir com as
massas populares. Esqueça-se da falsa sabedoria e comece a reaprender de novo.
E aí é que vocês vão descobrir a validade daquilo que vocês sabem, na medida em
que vocês testam o que vocês sabem com o que o povo está sabendo. Eu acho que
isso aí que e o básico .
"Eu nunca escrevi
nada do que tivesse feito. Nem carta eu posso fazer se eu não tiver algo
importante sobre o que conversar. Então é uma das minhas boas limitações. Meus
livros são sempre relatórios. Agora, é claro, são relatórios teóricos, feitos a
partir da prática, então isso significa e seguinte: quem pretende trabalhar com
esses relatórios que são os meus livros, deve sobretudo estar sempre disposto a
recriar o que eu fiz, a refazer, e não só copiar, mas reinventar as coisas.
Este treco inclusive é muito cristão. É nesse sentido que a gente participa da
obra da criação e recriação do mundo com Deus. Eu faço uma força danada prá não
deixar de cumprir essa tarefa. Esse negócio de receber coisinha de graça de
Deus eu não gosto. E dar o duro também".
UMA EXPERIÊNCIA
Assim que cheguei da
Europa, no ano passado, prá morar de novo no país, eu trabalhei um semestre com
um grupo de jovens que fazia uma experiência numa comunidade de favelados. Eles
fizeram durante alguns meses um trabalho exatamente como de vocês. Foi durante
a construção de um barraco que eles fizeram uma experiência de alfabetização
muito interessante. Depois eles sumiram de casa e bem depois apareceram de novo
e me disseram: "Paulo, a coisa mais formidável que a gente tem prá dizer é
que por mais que a gente tivesse lido você e conversado com você, a gente
cometeu um erro tremendo. A gente tinha botado na cabeça da gente que o povo queria
ser alfabetizado. Como a gente sugeriu ao povo que a alfabetização era
importante, o povo passou seis meses com a gente falando daquilo por causa da
gente. Depois que o povo ganhou intimidade com a gente dando risada eles
falaram: "nóis nunca quis isso! "Vocês vejam, olha era uma equipe
bacana que tinha lido tudo meu, que tinha discutido comigo um semestre. E eu
também fui enrolado por ela. Essa equipe tá totalmente convencida do que o povo
queria na verdade. Essa equipe tinha transferido ao povo a necessidade de
alfabetização.
Isso é outra coisa, pois
num país que há 480 anos o povão leva porrete, é a coisa mais fácil do mundo se
você chega com pinta de intelectual e você termina insinuando, sugerindo que há
uma necessidade que o povo deve atender a ela. O povo vai dizer: "É,
senhor, o que eu quero". Então essa advertência que eu faço.
CONCLUSÃO
VIVER PACIENTEMENTE
IMPACIENTE
Uma coisa que eu sempre
falo e que poria agora num dos princípios que eu esqueci: O educador na opção
que a gente pensa que tem, tem que viver pacientemente impaciente. Viver a
relação entre impaciência e a paciência. Não é possível ser só impaciente como
muita gente é. Querer fazer revolução daqui à quinta-feira. E meter na cabeça
da gente um desenho da realidade que não existe, como esse, por exemplo:
"as massas já tem o poder no Brasil, só falta o governo". Isso só
existe na cabeça de alguém, não na realidade econômica, política e social do
Brasil.
"A IMPACIÊNCIA
SIGNIFICARIA A RUPTURA COM A PACIÊNCIA. ENTÃO QUANDO VOCÊ ROMPE COM UM DESSES
DOIS POLOS
VOCÊ ROMPE EM FAVOR DE UM
DELES".
“Se
você rompe em favor da impaciência então você cai necessariamente no voluntarismo,
e a concepção voluntarista da história é a negação dessa história..."
"... TÚ VIVES, MAS
TRISTE
DUMA TAL TRISTEZA
TÃO SEM ÁGUA OU CARNE
TÃO AUSENTE, VAGO,
QUE PEGAR QUISERA
NA MÃO E DIZER-TE:
AMIGO, NÃO SABES
QUE EXISTE AMANHÃ?
ENTÃO UM SORRISO
NASCERA NO FUNDO
DE TUA MISÉRIA
E TE DESTINARA
À MELHOR SENTIDO
EXISTO, AMANHÃ
SERÁ OUTRO DIA,
PARA ELE VIAJAS.
VAMOS PARA ELE.
VENCESTE O DESGOSTO,
CALCASTE O INDIVÍDUO,
JÁ TEU PASSO AVANÇA
EM TERRA
DIVERSA.
TEU PASSO : OUTROS PASSOS
AO LADO DO TEU...
DUMA TAL TRISTEZA
TÃO SEM ÁGUA OU CARNE
TÃO AUSENTE, VAGO,
QUE PEGAR QUISERA
NA MÃO E DIZER-TE:
AMIGO, NÃO SABES
QUE EXISTE AMANHÃ?
ENTÃO UM SORRISO
NASCERA NO FUNDO
DE TUA MISÉRIA
E TE DESTINARA
À MELHOR SENTIDO
EXISTO, AMANHÃ
SERÁ OUTRO DIA,
PARA ELE VIAJAS.
VAMOS PARA ELE.
VENCESTE O DESGOSTO,
CALCASTE O INDIVÍDUO,
JÁ TEU PASSO AVANÇA
TEU PASSO
AO LADO DO TEU...
(Carlos Drummond de
Andrade. Uma Hora, mais outra.)
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